sábado, outubro 27, 2007


A enóloga

Laura tem vinte e oito anos. Ar catita. Olhos amendoados verde-musgo e uma pele naftalina que deixa adivinhar o sangue à flor do nariz arrebitado. Basto cabelo escuro e lustroso entrecotado por um risco em ziguezague que lhe sucalca a nuca nívea até à testa.

Sentada, mantém porte esguio e pose altiva. O vestido negro denuncia reentrâncias curvelíneas que valorizam a gema larimar hexagonal pelo último terço do decote em U.

Linda de morrer e só me fala de vinhos.

Oscila circularmente o cálice de tinto. Pára, espera e cheira. Volta a oscilar, ora em elipse, ora em círculo. E pára. E repete. E diz:

- Alfrocheiro medonho, não fora o Merlot... Trinta/setenta, sem dúvida. Quarenta/sessenta, vá lá...

- Ah é...? - Pergunto eu.

- Sem dúvida, merecia madeira. Aduelas, aduelas dela!

Tento fugir ao mote:

- Então, Laura, e que me dizes à lebre?

- Querido, não está má... se bem que se a marinada tivesse levado Chardonnay 2005... hmm... Clos de Vougeot, talvez, o sabor estivesse muito mais intenso e a carne muito mais interessante!

Foi a gota de vinho. Nem o poder dos teus glúteos, Laura, consegue sobreviver à cortina do bocejo da obsessão alheia. Talvez se te tivesse deixado de véspera a marinar em Chardonnay...

sexta-feira, outubro 26, 2007


Lolitame mucho

Os primeiros livros da minha vida foram os que me foram lidos na extrema infância, ainda eu não sabia ler, porque me fizeram perceber que eram coisa fascinante. Curiosamente, não eram livros infantis. Meus pais não gostavam de bebezices e não tinham pachorra para fadas e similares. Eram livros de conteúdo "tame" mas clássicos. Basicamente romances/novelas bucólicas, românticas e/ou moralistas, coisas que se podiam ler a uma criança sem lhe conspurcar a mente com impropriedades. Defino esta primeira fase - definir é básico – como uma janela para o mundo, para diferentes mundos.
Numa segunda fase, vem a descoberta da fantasia: o Noddy (esse mesmo, de Enid Blyton, os Five, os Seven), Walt Disney, Tintin, Julio Verne, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick, Carl Sagan.

Numa terceira fase, urge a descoberta da interpretação, a busca incessante das referências. Quase tudo século dezanove: Viagens da minha Terra de Almeida Garrett; Alexandre Herculano; Eça, o enorme Eça. Andava pelos quinze. E pela puberdade.
Na pré-universidade, gritava a testerona e a tentativa da teorização do mundo: Herman Hesse – Siddhartha; Albert Camus - L'étranger.
No Campus, reconsiderei, reponderei. Bolas, faltava-me o verdadeiro Conhecimento. Andava aos ziguezagues, por teorias circulares… peguei em A. J. P. Taylor - The Struggle for Mastery in Europe 1848–1918 e aterrei na realidade. Na percepção duma Europa muito mais complexa, em que os equilíbrios se alcançavam por tácitas alianças…

Algo mais tarde, apreciei a percepção da simplicidade. Afinal, eram os tais clássicos: Thomas Mann; Shakespeare; James Joyce; Marcel Proust; Charles Dickens, "David Copperfield or The Personal History, Adventures, Experience and Observation of David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery (which he never meant to be published on any account)"- sei de cor, juro; Tolstoi, Anna Karenina.
Hoje, contento-me com a emoção da surpresa, da descoberta inesperada, da comoção: Nick Hornby, Fever Pitch. E mais. Alguns…

PS: Foi uma proposta indecente, Lolita. Íntima, íntima... mas diverti-me bastante...